Memória de dois dias de caça à perdiz com falcão no Alentejo
“A brisa pelas nossas costas, a prima de peregrino centrada, a Sevilha estática a apontar a perdiz, avançámos à grita!
Os meus olhos não perdiam a perdiz que rápida se afastava, ouvi perfeitamente o silvo por cima de mim e de repente a pancada e penas no ar. Isto tudo à minha frente, talvez a uns cento e cinquenta metros. Quando lá cheguei já o falcão desplumava a presa morta e na cara do David, um sorriso de alívio e dever cumprido.
Pela minha parte deitava os bofes pela boca. Nestas, como em outras lides, os maços de tabaco pesam!”
A manhã quase findava quando finalmente entramos na Herdade da Gravía perto de Baleizão e o dia estava perfeito, fresco, sol sem nuvens, pouco vento, Dezembro ía já a meio.
Finalmente depois de trinta anos de paixão por estas aves, e depois de quatro anos a trabalhar com elas, “finalmente” assisti no campo a um lance real de falcão a perdiz selvagem. Homem, ave, cão, presa e campo. Foi indescritível e por muitos anos guardarei as imagens. O ambiente de equipe, pré, durante e pós caçada. A busca e vigia às perdizes, o cerco e aproximação cara ao vento, a Sevilha a trabalhar, o lance dos falcões, as saudáveis distancias percorridas, o alegre cansaço, a satisfação de ter cooperado e assistido a imagens de tão rara beleza e de tão alto grau de dificuldade que me fazem sentir um previlegiado.
Nestes dois dias voámos seis aves; A minha Marquesa imberbe e jovial, muito sacre e pouco Gerifalte híbrida, a peregrina do David (que nestes dois dias ganhou a medalha de “eficácia”), os peregrinos do Hugo e do Lino e os dois peregrinos do António. O terreno intercalava plano com ondulado, aqui e ali com oliveiras velhas e maroiços de pedra onde as perdizes se acoitavam. Os falcões subiram entre os cinquenta e os oitenta metros, o que se veio a revelar a altitude certa para o tipo de terreno / presa.
O 4X4 do António seguia na frente até que fez sinal de perdizes. Circundámos o bando e soltei a Marquesa no ar, demorou um pouco a colocar-se, as perdizes estavam debaixo de umas oliveiras, a Sevilha apontava à espera, avançámos, sai a primeira perdiz que levanta, a Marquesa pica, a perdiz acoita-se e explodem mais seis em todas as direções. A Marquesa desnorteou-se e decide voltar à perdiz acoitada (entretanto este comportamento tornou-se padrão) que entretanto desaparece. Três tornos no sítio e lá vai ela tomar altura novamente; A cadela amarra de novo, a Marquesa à espera e avançamos. A perdiz salta baixa e a Marquesa pica e segue na cauda até longe onde deixamos de perceber o que se passa.
Vejo-a subir por cima da oliveira e ficar aos tornos a assinalar. Toca a correr. A perdiz estava debaixo de uma pedra aterrorizada, apanho-a e avanço para o meio do campo para a soltar na tentativa de voltarmos ao lance.
Com a Marquesa à espera lá em cima, atiro a perdiz ao ar, mas ela cai no chão como se estivesse morta e a Sevilha encarregou-se de lhe fazer uns mimos. Dou o dia por encerrado para a Marquesa e recolho-a. Contrariamente às minhas expectativas até se portou muito bem. Só muitos dias mais tarde me apercebo de que os vários escapes capturados no chão a “ensinaram” a perseguir na tentativa de que a presa poise e seja assim cobrada. Mau número!
Continuámos e a “piéce de resistence” ainda estava para vir. Às tantas deparo-me com uma cabeça e pescoço alto a espreitar escondida no restolho lá no meio do campo. Um sisão!? O António já o tinha visto e fazia-me sinal de longe. Seguimos por detrás de um combro para tomar posição. A última ave que faltava voar era o terçó peregrino juvenil do António, teoricamente sem hipótese de capturar, mas como o que nos impele não será tanto as capturas, mas o “todo” do lance, a solta do falcão, a subida, a espera, a coragem, o cão “amarrado”, o timing, o picado com ou mesmo sem contacto, no fundo o conjugar destes items todos.
Era o primeiro sisão deste falcão e veio com a alma toda, o sisão levanta baixo mas em crescendo acelerado, o falcão pica e entra na “cola” em perseguição até que sente na pele o poder de ascenção do sisão e dá a volta para trás. Entretanto a Sevilha novamente amarrada com outro (sim eram dois) que resolveu levantar da cama antes que o falcão se posicionasse outra vez; Ainda nos concedeu um picado oblíquo lá de longe mas obviamente já sem hipótese. Valentíssimo falcão que me fez vibrar de um forma que eu não estava à espera.
No dia seguinte e digno de realce pelo inusitado da situação foi ainda um lance da peregrina do David; Foi sendo um lance normal, subiu, centrou-se, avançámos, picou bem mas falhou o contacto e ficou aos tornos baixo até o David se aperceber que não tinha nem rol, nem luva para recuperar o falcão.
Com a excitação do lance, o amigo David deixou tudo trezentos metros lá atrás ao pé do carro. Enquanto ele volta ao carro para ir buscar o material, o falcão continua por ali às voltas e recomeça a subir centrado. O António apercebe-se de que o falcão continua a caçar, mas desta vez sem o David. A Sevilha amarrada numa perdiz, o falcão posicionado e do David nem sombra. Está na realidade a caçar conosco e avançamos.
Saltam duas perdizes, o falcão pica quase até ao chão e entra na cola em perseguição. Quase cem metros à frente cobra a perdiz antes de ela se esconder no sujo. Foi um lance perfeito e apanhámos um fartote de rir pelo inusual da cena. Equipe formada no momento, pela circunstancia e funcionou. Já o falcão tinha quase meio papo quando chegou o David esbaforido para tomar conta da ocorrência. Só então o pusemos ao corrente da situação e foi ainda (claro) admoestado a pagar o jantar. Quero ainda mencionar a presença sempre simpática dos nossos dois convidados, Claire Buchy e Chip Anderson (de
www.aroadlesstraveled.us, organizadores de viagens de caça) e salientar os dotes de fundista de primeira alem de repórter fotográfica da Claire, a quem agradeço as excelentes fotos e a companhia nas correrias.
Em meu nome e em nome da
www.aroadlesstraveled.us o meu muito obrigado ao António Carapuço que nos recebeu, orientou e proporcionou tantas imagens e experiencias fora do comum.
Até à próxima
Jorge Saraiva
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