GASTRONOMIA: Restaurante Bem-me-Quer - Fome Cega!

Com as cortinas entreabertas apenas por alguns segundos, uma senhora baixa e roliça agarra-nos pela mão e fala-nos com voz de mel. Mantenho os olhos muito abertos, mas em vão. Está escuro que nem breu, não adivinho nenhum contorno, seja da pessoa à minha frente ou da que me segue.Perdi completamente a noção do espaço.Damos risadas nervosas enquanto que seguimos em fila indiana a voz doce que nos orienta.Ela é a nossa bússola, a nossa referência, a única presença que os nossos sentidos baralhados identificam. Perguntou todos os nossos nomes e chamáva-nos por eles, dando mais confiança e familiaridade a esta relação que nascia deste manto negro. À medida que nos sentávamos, por ordem, à volta de uma mesa invisível, compreendíamos o desafio que tínhamos pela frente: como apurar tantas outras capacidades relegadas para 2º plano sempre que se impunha a liderança déspota do olhar?
Esta era sem dúvida uma viagem única para todos: Sabores, formas, texturas, aromas ganharam toda a importância. Mas foi mais do que isso. Conhecermo-nos melhor sem nada ver. As nossas roupas ou maquilhagem pouco interessavam e cheguei mesmo a pensar no ridículo de ter perdido mais de 10 minutos com rimmel, risco ,batom e ainda umas quantas escovadelas no cabelo. Os modos mais ou menos educados de sentar, comer ou agarrar nos talheres… de nada valiam neste convívio. Esta tertúlia era vivida com palavras, risadas e uma partilha literalmente cega da mesma fragilidade, do mesmo desafio.
Imaginava a D. Ana, a senhora da voz doce, a serpentear pelo espaço com naturalidade e firmeza. Os seus movimentos pareciam leves e de uma destreza ímpar. Punha e tirava pratos e copos da mesa, dispostos de forma cuidada e harmoniosa, sem sequer hesitar. D. Ana via com o coração.Sussurrava-nos quase que ao ouvido cada nova etapa desta degustação “às escuras” e o paladar curioso testava, interrogava, provava na tentativa de acertar no que os nossos olhos normalmente dão como certo.
Estava com fome. Aliás, como sempre, estava mesmo esganada de fome. Agarrei com as 2 mãos na 1ª taça que encontrei à minha frente e devorei todos os pedaços de pão que nela se encontravam enquanto os meus colegas ainda tacteavam as peças de louça ao seu redor.Senti-me envergonhada mas sorri e agradeci à escuridão ter disfarçado a minha habitual atitude sôfrega, aliás, habitualmente alvo de censuras: “Não esperas pelos outros, Milene?”. “Come mais devagar que te faz mal!”. “ A comida não foge, escusas de comer tudo de uma vez”. Ainda hoje oiço isto vezes sem fim da minha mãe, dos meus amigos. “Caraças, pá. Estou cheia de fome e quero comer,posso?”Passo muitas vezes por mal educada …quando só tenho é uma fome dos diabos! E, claro…uma dose generosa de impaciência.Pronto. Já passou. Acalmei o estômago e dou tempo para que os sentidos voltem de novo alertas. Contam-se histórias, sentimentos , preferências, dúvidas, segredos. Alguns com a rebeldia e irreverência de uma adolescência ainda próxima, outros com a timidez e inocência de outrora mas sempre com humor e verdade. Também oiço o silêncio da poeta. Está escuro mas imagino-a de olhos fechados para sentir com a alma o que nos irá contar com arte.
Os copos estão gelados.Cheios de sangria de champagne , leve e fresca que é substituída rapidamente por D. Ana, sempre por perto. Pouparam-nos a tragédia de termos que ser nós a servir os copos….mas fazer um brinde é já uma tarefa dantesca! E movimentamos no ar o nosso copo na esperança de outro vir ao seu encontro. E é aí que se ouvem sons estridentes. Por pouco não partem. Não medimos distâncias, forças e direcções. Mais gargalhadas.
Sinto entre os dedos as formas de 3 copos, tamanhos irregulares, diferentes temperaturas. Bebo o primeiro. É divinal, cremoso, intenso. Mas sinto a falta de uma colher. Inclino o copo e acho que já estou a beber pelo nariz. “Creme de Cogumelos”, alguém avança.Muito bom. Passo ao 2º, parece-me legumes. É mais insípido e sem o acabar vou directo ao 3º. Sim, é o meu favorito. Adoro gaspacho. O sabor do tomate, a acidez do pepino, os sabores de salada fria que lembra o verão. Mais um gole de sangria gelada. “Abóbora com laranja?” Hum…não chegava lá. Tento de novo e volto ao copo do meio acabando-o de novo no nariz…mas já é o meu cérebro a orientar o paladar. Não chegava mesmo lá.
A fluidez da conversa aumenta com as rodadas da sangria assim como a vontade de provar mais. D. Ana regressa com mais um tabuleiro, desta vez com 3 taças. “Uma delas podem comer com a colher e as outras à mão”. Vou logo espetar os dedos no meio de uma taça cheia de arroz! Pronto. Voltou a sôfrega. Colher? Onde raio está a colher? Fixe. Está aqui. E começo a comer o arroz. Mais uma aventura: acertar com a colher na taça, levar a colher cheia sem deixar cair o arroz, acertar na minha boca.Ó vidinha, isto cansa. So à 10ª colherada ganho alguma prática . Delicio-me com a romã, passas e nozes entre bagos de arroz. Viajo para lugares longínquos com esta mistura exótica. Atiro-me ao folhado e logo de seguida a uma tortilha meio esponjosa com sabor a espargos. “Mais sangria, por favor.”
Continuamos a descobrir vizinhanças e afinidades. A escuridão revela-se confidente. Quando chegam os doces, dou a mim mesma tempo e provo lentamente cada um deles com a paciência de quem já aprendeu a lição: não é apenas o prazer dos sabores que se torna mais sublime com todos os sentidos. São todos os momentos da nossa vida.

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Comentário de Luis Marques Cotonete em 4 Fevereiro 2011 às 12:51
Artigo com piada, mas é enormeeeeeeeeeeeeeeee
Comentário de Erica Duarte em 4 Fevereiro 2011 às 0:14
Nunca tinha ouvido nada parecido, mas parece-me tentador! A experimentar, sem dúvida!
Comentário de Inês Sousa Almeida em 3 Fevereiro 2011 às 23:32
Fantástico!
Comentário de Bitina Santos em 3 Fevereiro 2011 às 16:06
boa Milene!
Comentário de Milene Cabral em 3 Fevereiro 2011 às 14:35

é verdade! Acontecem normalmente quintas e sextas sob reserva. No entanto, mediante nº pessoas, evento em causa ou até um pequeno acréscimo de preço poderá ser agendado para outro dia de semana. A propretária, a Paula é uma simpatia e facilitará o processo certamente. Os preços não são baratos, mas valem pela experiência única.

Comentário de MyGuide em 3 Fevereiro 2011 às 11:16
Que susto, Milene! Por momentos achámos que tinha ficado com fome no Bem-me-Quer! Afinal, trata-se dos Jantares às Escuras. Acontecem num dia de semana específico, ou não?
Comentário de Milene Cabral em 2 Fevereiro 2011 às 22:35
é realmente uma experiência única! Restaurante Bem-me Quer, Almirante Reis, nº152...Jantares às Escuras apenas sob reserva!!!
Comentário de Xana Ales em 2 Fevereiro 2011 às 21:59

olá Milene.

 

aqui está algo q deixou os meus sentidos todos em alerta..tenho q experimentar.

 

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