VIAGENS (lá fora): El Salvador, as crianças subtraídas à família

Carolina estremeceu. As minhas palavras foram inocentes, mas mudaram o seu semblante. Radicalmente. O sorriso doce de quem, sentada na soleira da porta, cumprimentava um descontraído turista que passava, deu lugar a uma quase animosidade.

#O seu olhar cuspiu fogo quando fui ainda mais ousado. Aproximei-me. Baixei-me. Estendi os braços, com dedos convidativos. Segundos depois, para quase desespero de Carolina, a sua filhota de dois anos estava no meu colo. Sorridente.

“Queres vir comigo? Vamos?”, perguntei à bebé. Não sabia o quão sensível era o tema. Na recôndita Suchitoto, em El Salvador, sobram marcas de uma violência moral de décadas: crianças subtraídas às famílias.

Nas zonas rurais do país, ainda há quem procure crianças de famílias pobres ou disfuncionais para as adoptar. Tomar como suas. A exemplo dos repetidos crimes que sucederam durante a guerra civil de 1980 a 1992.

“Donativos para que os irmãos do adoptado tenham acesso a educação e saúde ou a promessa de uma melhor vida para a criança têm granjeado negócios em que nem todas as partes ganham”, lamenta Maribel, de uma ONG local.

O conflito armado ainda provoca feridas no tecido social salvadorenho. O desaparecimento forçado de pessoas foi prática sistemática de violação de direitos humanos. Executada e tolerada pelo Estado. Uma estratégia de terra queimada. A ideia era desarticular e destruir povoações que julgavam “a base social da guerrilha”.

Milhares de crianças, na maioria com menos de sete anos, acabaram nas mãos da cruz vermelha de El Salvador. Sem critério ou controlo, foram oferecidas a particulares, nacionais e estrangeiros. Muitos militares e políticos também se apropriaram de crianças. Que nunca foram reunificadas com as famílias de origem. Até hoje, ninguém foi julgado por estes crimes.

Foi com o intuito de recuperar algumas dessas vidas que surgiu a Asociación Pró-Búsqueda de Niños y Niãs Desaparecidos. Ao longo dos anos tem ajudado os adoptados a reencontrar as suas famílias.

“É um trabalho árduo, moroso e que exige muita investigação. Mas cada reencontro proporcionado faz sentir que toda esta dedicação vale a pena”, diz uma responsável da Pró-Busqueda.

Em Suchitoto também se fala de “acordos particulares”. Casos em que as crianças são moeda de troca. Ou meras fontes de rendimento. “Uma vizinha minha, não podendo ter filhos, acordou com uma família carenciada que ficaria com todas as crianças que nascessem de então adiante. Já tem três, tantas quantas as que continuam a viver com os progenitores”, diz a dona de uma loja.

Actualmente, as autoridades procuram moralizar o sistema. Legislam. Impõem regras. Apertam a vigilância.

Carolina recebe o seu rebento dos meus braços. E assim acalma. Elogio a beleza da criança. Dei-lhe os parabéns. Despeço-me com um sorriso aberto de “buenas noches”. Sanado um problema que não o chegou a ser.

 

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