Em dias como estes, nos fins de Janeiro, dias friorentos, cinzentos, meio pesados para o corpo e o espírito, à memória surgem-nas as saudades dos longos e intermináveis dias de Verão. Dos momentos passados à beira mar procurando no Mar lavar as mazelas de extensos e morosos anos dedicados ao frenesim do nosso quotidiano. Por estes inversos dias que vivemos em fins de Janeiro, ansiamos por aquele dolce far niente de veraneante. Ao ritmo a que actualmente vivemos as nossas Vidas nada mais natural do que ambicionar a chegada do Verão e de tudo a que a ele temos cultural e socialmente convencionado. Por vezes é aqui que reside o nosso erro. Quantos de nós já se encontro nesse contraditório “cansaço das férias”? Chegar ao final do nosso mais que merecido anual descanso imersos num sentimento de cansaço e saturação. Enfrentar o primeiro dia de trabalho assaltados por um, como que ridículo e paradoxal, sentimento de alívio.

Propor-nos a fazer uma drástica alteração, a experimentar algo de verdadeiramente novo e perceber o efeito que essa decisão tem em nós próprios pode, em si mesmo, ser o condutor, o meio que nos permite encontrar uma forma mais plena, saudável e recompensadora sobre aquilo que é o nosso inegável direito ao lazer.

Confesso ter encontrado algo assim e particularmente ter cumprido as melhores férias da minha Vida num destes rasgos de lucidez e negação da simples prática ociosa “julho-agostiana”, permitam-me o termo.

Tomei conhecimento dos Caminhos de Santiago há uns largos anos. Na altura, e hoje continuo a compreender as reticencias de qualquer pessoa, a simples ideia de cumprir centenas e centenas de quilómetros a pé, transportando comigo apenas uma mochila meio cheia de parcos pertences, fez-me pensar seriamente acerca não só da viabilidade de tamanha tarefa como também da minha própria sanidade mental. Resolvi assumir a decisão de fazer o Caminho Francês, o mais antigo de todos os Caminhos de Santiago, apenas e só quando me propusesse a cumpri-lo todo. Todo e de uma só vez. Começar em Saint Jean de Port, nos Pirenéus franceses, e terminar em Finisterra, junto à costa atlântica espanhola. Cerca de 1000 km depois. Sim quase 1000 km depois. A verdade é que esta tornou-se a minha mais acertada decisão no que a férias diz respeito.

O Caminho de Santiago é feito por milhares de pessoas ao longo do ano. Com especial incidência nos meses de Verão. Sendo por isso qualquer questão ligada à solidão ou segurança algo que não constitui problema. O Caminho é feito por entre florestas esplendorosas, montes e vales luxuriantes, paisagens que parecem retiradas de um qualquer postal turístico. Com a pequena grande diferença que tudo isso está em frente dos nossos olhos, à nossa volta como que pulsando. Vivo. Interagindo com o caminhante. Vivendo em comunhão com aqueles que tem a audácia do cumprir o Caminho. A experiencia permite assistir, participar, fazer parte de um mundo do qual fazemos parte mas do qual estamos arredados à demasiado tempo. Ter o privilégio de parar e assistir ao voo de águias-reais em plenos Pirenéus. De caminhar acima do nível das nuvens. De assistir ao nascer do Sol nos Pirenéus. De logo em seguida a velocidade uma manada de cavalos selvagens que galga, ao longe, Pirenéus acima, nos captar a atenção e nos deixar sem respirar por breves momentos. De ter o prazer de assistir a tudo isto e fazer parte deste cenário quase que selvagem, puro e como que imaculado é algo para o qual, acredite, não estamos preparados. Estes são apenas alguns dos “presentes” que o Caminho dá a quem tem a coragem de se propor a essa jornada.

Mais importante. Cumprir o Caminho não é apenas caminhar de ponto A para ponto B. É fundamentalmente cumprir uma viagem pessoal com repercussões inimagináveis e de certo modo gloriosas. O desafio é não só conseguir cumprir o Caminho mas o contrário. Deixar que o Caminho nos cumpra a nós próprios. É ter a coragem de  compreender que no Caminho deixamos de ser a pessoa que julgamos ser. É começar e terminar a viagem assistindo a uma profunda transformação no próprio caminhante. Aquele que começa não é o mesmo que acaba. Talvez a melhor imagem que se pode transmitir é a purga. É como se ao longo do Caminho aconteça um processo em que se purga tudo aquilo que “pesa” ao longo do ano. Para alguns, ao longo da Vida. Como se viajante fosse deixando ao longo do Caminho tudo o que o condiciona. Um processo de purificação ao longo da jornada. Tudo isto sempre acompanhado pelos mais extraordinários cenários naturais que a Península Ibérica oferece

Por esta ser uma rota milenar existem pueblos de cinco em cinco quilómetros. Ponto de paragem para descanso ou para pernoitar que oferecem todas as condições. Existem ao longo do Caminho desde albergues ou pensões, relativamente baratas. Ou em alternativa, e aqui requer algum planeamento que pode ser feito diariamente, antes do inicio de cada jornada, a opção de pernoitar ou descansar em albergues municipais ou religiosos onde a estada é gratuita. Oferecendo sempre acesso à cozinha, casa de banho e cama lavada. Locais onde nada falta para se cumprir uma viagem sem sentir a carência de qualquer superficialidade.

Participar numa aventura desta envergadura é também, e essa é uma parte importantíssima da experiência, o contacto com todos os outros viajantes. No Caminho encontram-se viajantes de todos os pontos do Mundo. Desde espanhóis, por razões óbvias mas também italianos, franceses, alemães, ingleses, polacos, húngaros, russos, americanos, canadianos, japoneses, australianos … enfim, todas as nacionalidades estão representadas. Curiosamente, não são muitos os portugueses que se propõem a fazer o Caminho. Talvez por falta de divulgação no nosso Pais.

Fazer o Caminho é, como devem ser quaisquer férias dignas desse nome, ter um bilião de histórias para contar. É ter uma experiencia memorável e exageradamente enriquecedora. É ganhar através da camaradagem criada entre viajantes, amigos para uma Vida. Gente que por circunstâncias ditadas pelo acaso se cruzam no Caminho do viajante e que com ele partilham um enorme experiencia de Vida.

Fazer o Caminho é mudar a forma como nos entendemos e entendemos o que nos rodeia.

Um conselho. No regresso a casa é o viajante acompanhado por uma aura que não passa indiferente a qualquer um que se cruze no seu quotidiano. Um aura que garantidamente é bem mais duradoura que qualquer tom de pele, bronzeado trazido de inertes e monotonamente repetidas estadias junto ao Mar.

Ultima nota. Fazer o Caminho é possível a qualquer um. Basta ter a coragem de se querer descobrir, melhorar e superar. E prepare-se para a viajem da sua Vida.

Buen Caminho

Ultreia et Suseia

 

 

A “pequena história” do Caminho

 

É uma rota de peregrinação cristã desde o século XII, altura em que, segundo a lenda, foram encontrados os restos mortais do Apóstolo Tiago onde hoje se ergue a Catedral de Santiago de Compostela.

As opiniões não são consensuais mas consta na tradição oral que anteriormente a este período, esta era já uma rota utilizada por vários povos pagãos da Europa Central. Segundo a tradição pagã todos aqueles que desejavam atingir um elevado plano de espiritualidade, como que um dos rituais de iniciação para praticas curativas através do contacto com um mundo mais metafísico, como que assumindo-se como interlocutores privilegiados com o Mundo dos Mortos, para estes, que se certo modo se assumiam, no seio das suas comunidades como uma espécie de druidas, fazer esta rota até ao fim do Mundo – até à localidade hoje conhecida como Finisterra, o fim da Terra – era algo de necessário. Fazer a viagem até ao fim da terra era para estes povos algo de inimaginável. Uma verdadeira odisseia. Até porque não só o Caminho havia de ser cumprido como também provado. Contam-se várias histórias acerca da origem da Vieira, concha símbolo dos peregrinos, mas para aqueles que defendem e acreditam na existência desta rota num era pré-cristã, a Vieira é essa prova. Prova de que se havia chegado ao fim da terra, ao Mar e que se havia regressado.

A verdade é que a origem do nome do hoje chamado Caminho de Santiago remonta à época pré-romana. Em latim dava pelo nome de Campus Stellae, Campo das Estrelas. Isto porque o Caminho fica por debaixo da Via Lactea e acreditam alguns, será mesmo a transposição da Via Lactea na Terra.

Seja como for uma coisa é certa e segura. É preciso cumprir o Caminho para sentir essa ligação metafísica e celestial.

 

PS

Busque conselhos para o Caminho nos sites dedicados a esta rota milenar e aventure-se.

Exibições: 497

Adicione um comentário

Você tem de ser membro de MyGuide para adicionar comentários!

Entrar em MyGuide

Comentário de Pedro Afonso em 26 Janeiro 2011 às 22:52
Fiz 114km pelo caminho Português, enquanto me preparava para uma missão de 2 meses em Moçambique, sem dúvida um caminho para a vida e sobre a vida!!! Parabéns Fernando!!! Bom caminho!
Comentário de Jorge Mendes em 24 Janeiro 2011 às 19:37
Ainda não perdi a esperança de fazer o caminho
Comentário de Marina Soares em 24 Janeiro 2011 às 12:17

Óptimo artigo, Fernando! Eu que já não precisava de grandes incentivos (o caminho fnacês é também a minha escolha), mais entusiasmada fiquei. Tens mais fotos? Por enquanto só posso aspirar a pequenas fracções do caminho (enquanto deixo as pernas da minha criança crescerem só mais um bocadinho...), mas gostava de ver mais das tuas aventuras!

Comentário de Fernando Emmes em 21 Janeiro 2011 às 22:18

Cara Joana,

O Caminho é teu. O teu Caminho.

Eu acredito que o mais provável é ficares surpreendida. O que te vou dizer pode parecer infantil ou louco mas é rigorosamente a verdade, deixa que o Caminho tome conta de ti. E acredita que toma.

O meu conselho para todos é apenas um ... vão e sintam a Magia. Porque ela está lá.

Se precisares de qualquer informação diz, ok?

Comentário de Joana Sá Pinto em 21 Janeiro 2011 às 22:10



Sempre tive vontade de ir a Santiago, ir ficando nos alberbes pelo caminho e sentir a magia da viagem. Mas acho que não consigo fazer a caminhada toda a pé;)

COMUNIDADE MYGUIDE

O Myguide.pt é uma comunidade de Viagens, Lazer e Cultura.

Regista-te e publica artigos, eventos, fotos, videos e muito mais.

Sabe tudo sobre o Myguide aqui

Editores em destaque

EM DESTAQUE

Eventos em Destaque

Abril 2024
DSTQQSS
123456
78910111213
14151617181920
21222324252627
282930
       

Notícias

Aulas regulares (e para todos) no Museu do Oriente

Criado por MyGuide 5 Jan 2021 at 10:16. Actualizado pela última vez por MyGuide 5. Jan, 2021.

Pintar como os grandes

Criado por Agenda MyGuide 24 Nov 2020 at 18:30. Actualizado pela última vez por Agenda MyGuide 24. Nov, 2020.

É um restaurante?

Criado por Agenda MyGuide 9 Nov 2020 at 11:32. Actualizado pela última vez por Agenda MyGuide 9. Nov, 2020.

© 2024   Criado por MyGuide S.A. Livro de reclamações   Ativado por

Crachás  |  Relatar um incidente  |  Termos de serviço