Era a 1ª vez que o Paulo viajava comigo e com os meus pais. Namorávamos há pouco tempo e passávamos a vida a passear mas apenas dentro do país, sempre ajudados por comboios e autocarros com roteiros similares aos nossos. Por vezes, também as boleias de amigos e familiares tornavam mais fácil a chegada a cada destino. Há mais de 15 anos, a nossa paixão viajante dava ainda os primeiros passos. Mas daquela vez tudo seria diferente:  íamos de avião e não só  atravessávamos a fronteira como chegávamos a outro continente. Sabíamos que a cultura era distinta e a palavra “muçulmano” soava exótica, proibida mas estávamos longe de compreender o seu alcance religioso ou social.

O entusiasmo  transbordava nos nossos sorrisos constantes e na cúmplice partilha de uma nova experiência. Estávamos sôfregos em absorver tudo. As pessoas, as roupas , as cores, os cafés cheios de homens,  as ruas desordenadas, as casas desencontradas. Por fim, a Mesquita Hassan II ,  impondo-se à linha do horizonte. Nunca tínhamos visto nada assim: a mesquita era enorme. Ficámos horas, entrando e saindo para ver cada pedaço deste puzzle de luxo com varanda para o mar. O contraste com tudo o que já tínhamos visto em Casablanca era gigante.

Desde o minarete mais alto do mundo às salas de orações separadas passando pela importância do hijab, parecia que já sabíamos tudo. Imbuídos de espírito doutrinário e insistentemente pregador,  repetíamos, vezes sem conta, todas as palavras árabes aprendidas. Mas entenderíamos o seu significado?

As roupas colavam e o calor pintava as nossas faces já iluminadas pelo suor.  Tínhamos que descansar. Amantes da praia e do mar, procurámos o areal mais próximo banhado pelas águas quentes de um Atlântico que namora África. Ao longe, avistávamos a Mesquita que parecia flutuar no Oceano. As ondas correm, sobrepõem-se, cheias de espuma num convite descarado à diversão.Não reparo nas pessoas na praia mas apercebo-me de que são poucas. É Setembro, está um calor terrível e estou histérica por ter esta Costa da Caparica a 28 graus, só para mim.  

Dispo-me em segundos com a mesma alegria inocente que ainda hoje o faço na chegada a qualquer praia. Dou pulos, corro todo o areal e salto qual golfinho uma e outra vez nas ondas marroquinas. Nem se quer penso, nem se quer me lembro,  que estou praticamente nua. Procuro leveza e liberdade. Diante de olhos alheios, sou libertina e leviana. A inconsciência é infantil. Mas as formas do meu corpo não.  Regresso em passo lento à toalha. Continuo cega para o mundo à minha volta.

Aproxima-se,  silenciosamente, um homem alto. A sua pele é de sépia, a pele morena da África Branca e está fardado com as cores da autoridade. Supreende-nos com palavras em francês. No 1º momento não estamos a compreender. Apenas sentimos a tensão dos seus músculos, a voz  firme e a dureza no olhar. Algo se passa. A minha mãe ( a única a dominar com fluência a língua) é a primeira a descodificar a mensagem e diz-me aos  berros “Veste-te depressa!”. Mais do que  abrir finalmente os olhos, tenho-os arregalados. Tremo e o coração dispara. A isto deve chamar-se medo. Mas não só. Como pude ser tão estúpida? Sinto-me tão pequena. A minha mãe, no seu melhor francês continua a pedir perdão de forma submissa e argumenta com a ignorância sobre religião ou  leis. Nem mesmo nos “brandos costumes lusos” o desconhecimento dá permissão ao incumprimento.O homem fardado repete o mesmo discurso sobre a afronta à tradição, à modéstia e sobriedade muçulmana, como ousámos este comportamento numa das praias escolhidas pelos fieis para falar com Alá? Agarra-me por um braço e puxa-me com forte intenção de me levar ao estabelecimento policial mais próximo, apontando para uma casa pequena e degradada a uns metros dali. O Paulo não sabia o que dizer e olhava solidário para a minha t-shirt vestida do avesso e o meu cabelo desgrenhado cheio de sal. A minha mãe continuava a metralhar francês como eu nunca imaginei que ela soubesse. É nesse momento que o meu pai  intervém com a experiência de uma vida, a negociação de um comercial, as artimanhas de um vendedor. Em poucos minutos, a tensão dissipa-se e, a troco de meia dúzia de dirhams, pouco mais do que alguns cafés, o homem fardado deseja-nos a continuação de boas férias, alerta prudência para uma próxima vez e vira costas continuando caminho pela praia.

Respiro de alívio. Aprendi a lição. Ser livre não é impôr-nos aos outros, fora ou dentro da sua casa. O respeito e a tolerância sobrevivem na convivência pacífica de valores, crenças, cores. Essa é a verdadeira liberdade. E ela não tem preço. Ou será que custa apenas alguns dirhams?

 

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Comentário de Rita Silvério em 16 Junho 2011 às 22:04
sem palavras 5 nao 10 estrelas !
Comentário de Carlos Gilberto Menezes Cabral em 31 Maio 2011 às 20:58
:-)...estou mesmo a ver a cena!!
Comentário de Sonia Cabral em 19 Maio 2011 às 11:25
Excelente! Adorei a história!
Comentário de Erica Duarte em 10 Fevereiro 2011 às 12:44
Adorei o artigo, assim como a história. São estas "pequenas" aventuras que nos abrem os olhos e nos mostram, de facto, diferentes realidades.
Comentário de Bitina Santos em 10 Fevereiro 2011 às 12:36
Muito bom o teu artigo!   destaco entre as diversas linhas do texto esta: """Respiro de alívio. Aprendi a lição. Ser livre não é impôr-nos aos outros, fora ou dentro da sua casa. O respeito e a tolerância sobrevivem na convivência pacífica de valores, crenças, cores.""" è de facto uma afirmação sincera do que deve realmente SER !  Continua a surpreender-nos com a tua vivência nas diversas viagens que embarcas!

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