A Quinta da Regaleira, em Sintra, apresenta-se como um espaço verdadeiramente mítico que convida à reflexão e à exploração das mais profundas sensações


 

 

Patamar dos Deuses



O Palácio da Regaleira parece mais antigo do que realmente é, fazendo lembrar as construções manuelinas, que remetem para os descobrimentos. No entanto, não podemos dizer que se trata de uma construção manuelina, mas sim neo-manuelina, porque o estilo manuelino não é próprio do século XX, mas sim dos séculos XV e XVI. Assim, há um enorme reviver desta época e uma grande percepção da noção patriótica de Carvalho Monteiro relativamente a Portugal, principalmente no palácio. De facto, os jardins são considerados concepções mais universais e são muito ligados ao lado esotérico e filosófico da Quinta da Regaleira.


No Patamar dos Deuses, a escolha dos deuses representados em estátuas está intimamente relacionada com os interesses de Carvalho Monteiro e com a Regaleira em si.
Também no tipo de vegetação se encontra grande ligação ao construtor da quinta, tendo em conta que o pai tinha emigrado para o Brasil, onde se encontra a flora exótica também presente nos jardins.
Por ter tirado o curso de Direito em Coimbra, Carvalho Monteiro teve grande contacto com as correntes de pensamento da altura. Adoptava um conjunto de ideais regeneracionistas, que acreditavam no retorno de Portugal à época gloriosa dos Descobrimentos. De volta a Lisboa, construiu a quinta numa altura em que está presente em Portugal uma grande luta ideológica, havendo de um lado republicanos e monárquicos do outro. Apesar de não ser um político activo, podemos observar muitas representações da sua preferência monárquica no palácio. Há também presente uma ideia de um Quinto Império, muito associada a uma concepção messiânica, que em Portugal teve expressão com o Sebastianismo. A Quinta da Regaleira remete para a regeneração (da cultura portuguesa), através da Morte e do Renascimento. A caminhada pela quinta é fortemente associada às caminhadas realizadas nas grandes obras clássicas, como a Odisseia (Homero), a Eneida (Virgílio), a Divina Comédia (Dante) ou mesmo Os Lusíadas (Camões). Sendo um grande camoniano, Carvalho Monteiro dava grande importância à exaltação da glória portuguesa. Como nos Lusíadas, em que os portugueses fazem uma viagem, também os visitantes da Quinta irão fazer uma viagem. Esta viagem surge muito associada a uma demanda espiritual, com o intuito da busca pela salvação e/ou da própria concepção divina. Todos os elementos presentes na quinta estão, de alguma forma, relacionados com a Morte e o Renascimento.
O primeiro deus representado é Mercúrio (mitologia romana) ou Hermes (mitologia grega), que era conhecido por ser um mensageiro dos deuses, sendo a ligação do homem com os mesmos. Era também conhecido por ser o deus psicopombo, pois encaminhava as almas desde o corpo até uma avaliação posterior, aparecendo na Regaleira num contexto iniciático.
Vulcano, o deus seguinte, era muito associado ao fogo, o que remete para o gosto de Carvalho Monteiro pela alquimia e novamente para o contexto iniciático, com uma noção em que a matéria tem de morrer para renascer, mais pura, das próprias cinzas.
Dionísio (mitologia grega) ou Baco (mitologia romana) era o deus da festa, do vinho, da êxtase. Também o promotor de uma das grandes paixões de Carvalho Monteiro, que era a tragédia grega, nomeadamente em forma de arte de palco (teatro), livros ou ópera.
O deus Pã, representado metade homem e metade bode, tem uma grande aparência animal, simbolizando a parte activa da natureza, assumindo geralmente um contexto fálico, na medida em que Pã era um grande sedutor das ninfas, tentando fecundá-las.
Ceres (mitologia romana) ou Deméter (mitologia grega) era a deusa da fertilidade da terra e a responsável pelo aparecimento dos cereais, tendo um grande papel na explicação mitológica das quatro estações do ano.
Flora era a deusa das flores, com grande importância para Carvalho Monteiro, uma vez que este era botânico. Possuidor de um jardim muito exótico na altura, sempre se interessou mais por botânica e ciências naturais do que por leis, que praticamente nunca exerceu.
Vénus (mitologia romana) ou Afrodite (mitologia grega), deusa do amor, toma aqui um papel especial pois as obras que inspiraram Carvalho Monteiro na construção da Quinta da Regaleira têm sempre o amor presente. No caso de Os Lusíadas, o amor à pátria.

Mais à frente neste patamar, podemos encontrar um leão, que remonta à época da Baronesa da Regaleira. Este leão tem o intuito de representar a monarquia, principalmente o Rei.
Depois, vamos encontrar o deus Orfeu, que representa todos os seres humanos que iniciam a busca pela salvação e a deusa Fortuna (mitologia romana) ou Tyche (mitologia grega), a deusa da boa sorte, que fornecia o destino, por livre arbítrio, quando uma alma iniciava esta busca/caminhada. Os jardins levam-nos através de diversos caminhos, em que o caminho que cada um optar terá diversas consequências. Os pensamentos esotéricos, filosóficos e possivelmente religiosos, provêm das primeiras civilizações que, devido a repressões sociais, tiveram a necessidade de secretismo. Assim, podemos perceber a razão do enigmatismo da Quinta da Regaleira.


Grutas do Labirinto

As grutas do labirinto são grutas artificiais, totalmente construídas por Manini e Carvalho Monteiro.
Nestas grutas, os caminhos que nos levam ao interior do labirinto são livres. Remetendo para a mitologia, surge uma viagem e uma procura pela espiritualidade.
Estão presentes, de forma evidente, três dos quatro elementos fundamentais do conhecimento esotérico e da mitologia: a terra, a água e o ar. A terra, porque é dentro dela que os túneis são percorridos; a água, porque existem quer lagos exteriores, quer interiores; o ar, porque as aberturas são múltiplas, permitindo que a brisa nos surpreenda. O quarto elemento é mais subtil, tendo em conta que só com uma tocha ou uma vela é que era possível, naquela altura, percorrer túneis completamente escuros e cheios de sobressaltos. É o primeiro percurso da Quinta e é o encontro com os quatro elementos fundamentais. Temos ainda e sempre na Regaleira a dualidade luz/sombra, passando de uma para a outra com rapidez como na vida e no conhecimento.

 

Banco do 515

O banco do 515 tem Beatriz (da Divina Comédia de Dante) no centro, cinco unidades frontais de cada lado, sendo que as sextas estão de lado. Este número 6 remete-nos para o 616, mais vulgar e recentemente conhecido por 666. Como muitos dos cenários da Quinta da Regaleira, também este banco foi inspirado pela Divina Comédia. Beatriz, a mulher representada ao centro, terá feito uma profecia em que viria um mensageiro de Deus, que seria o 515, para combater o mensageiro da besta, o 616.
Este 515 seria um messias, que salvaria as civilizações do fim do mundo. Dante, como italiano, acreditava no ressurgimento do antigo império romano, que era controlado pelo Papa. Os betões acreditavam no Rei Artur e, em Portugal, adoptou-se a ideia do Sebastianismo, ou seja, os portugueses acreditavam que D.Sebastião voltaria e se daria o regresso à época dos Descobrimentos, gloriosa para Portugal.
De cada um dos lados do banco, estão representados dois galgos, que posavam ao lado de D.Sebastião na maioria dos quadros ou das ilustrações da época.



Fonte da Abundância

Em frente à Fonte da Abundância encontramos um espaço de reunião, em que um grande banco disposto em semi-círculo, com um trono no meio, está em frente a um altar. Este seria um espaço de encontro, algo “sagrado”, em que todas as pessoas no banco têm a mesma importância, à excepção do sujeito sentado no trono.

À frente deste espaço, está uma fonte que faz lembrar o baptismo e, essencialmente, a purificação. Na imagem à direita, podemos ver uma planificação deste espaço, incluindo a fonte, o alçado e a planta. As iniciais “CM” figuram nesta fonte tendo, no entanto, um significado ambíguo: poderão ser as iniciais de Carvalho Monteiro ou os nomes de Cristo e Maria. Neste último caso, surge-nos o ponto interessante de, entre a letra “M”, estar representado um peixe, que seria um símbolo de Jesus e dos primeiros cristãos.
De facto, o cristianismo adoptado por Carvalho Monteiro era muito puro e original, preterindo a forma de cristianismo que foi deturpada ao longo dos tempos.
Debaixo destas iniciais, encontramos uma concha que está por cima de uma balança, que representaria o equilíbrio natural entre as coisas. Ora, para nos conhecermos a nós mesmos, teria de haver um equilíbrio, que permitiria a busca pelo auto-conhecimento. Esta busca, consistia numa procura pelo interior de cada um, procura esta possível na Regaleira.
Em baixo, podemos observar o alçado da fonte.

 

Portal dos Guardiães

O Portal dos Guardiães é um espaço amplo, uma espécie de terraço, que proporcionou a Carvalho Monteiro a criação de um teatro na sua própria propriedade. Havia um espaço destinado à plateia, criando um anfiteatro, com uma acústica adequada. 

Este portal consiste num túnel, que leva a meio do poço iniciático, guardado por dois tritões. Surgem novamente as referências à mitologia uma vez que, na Divina Comédia, Cérbero aparece como guardião da entrada do inferno. Na Regaleira, o poço tem uma ideia de inferioridade e, à semelhança da obra clássica, guardiões a protegê-lo.

No meio destes dois tritões, está um búzio que, por sua vez, tem outro búzio mais pequeno no seu interior, surgindo como uma analogia ao útero e/ou ao ouvido interno. De facto, em alguns rituais inciáticos (sempre muito presentes na Regaleira), a audição era essencial, como elemento primordial da criação.

 

Poço Iniciático

Na época de Carvalho Monteiro, a porta que levava ao Poço Iniciático só podia ser aberta com um mecanismo próprio, que tinha de ser encontrado e consequentemente accionado. No entanto, a partir desse momento, não seria necessário qualquer esforço físico adicional, mas surge a necessidade de um esforço intelectual. É necessário perdermos os instintos materiais e primários e cedermos à condição de seres racionais que somos. A luz representaria a sabedoria e o conhecimento, enquanto a escuridão representaria a ignorância.

Se virmos o poço de cima, reparamos numa rosa dos ventos, que orientaria os iniciados. Simulando o centro do universo, o poço oferece quatro saídas ou direcções, sendo que a que leva à luz é a saída a Este.
É necessária a passagem pelos quatro elementos. Após a passagem pela terra, encontramos o ar em cima, a água numa ânfora e o fogo seria a luz do Sol. Esta passagem é encarada como uma purificação.
A saída representa uma escolha, sendo que as opções são várias, mas livres.
Os níveis do poço, que são nove, são uma outra referência à Divina Comédia e os níveis ou patamares correspondem aos níveis das iniciações.
Em termos de interpretação de numerologia, o 9 tem uma carga simbólica muito forte: o nove, sendo o último da série dos algarismos, anuncia ao mesmo tempo um fim e um recomeço, isto é, uma transposição para um novo plano. Encontrar-se-ia aqui outra vez a ideia de novo nascimento e de germinação, ao mesmo tempo que a ideia de morte; (...) o último do algarismos do universo manifestado, o nove abre a fase das transmutações. Exprime o fim de um ciclo, o acabamento de um percurso, o fecho do círculo.

 

 

As grutas

Nas grutas, surge uma enorme referência à Alegoria da Caverna (de Platão) em que, para sair da escuridão, não nos podemos deixar levar pela luz mais atractiva e pelo medo. É necessário confiar na própria orientação espiritual e não na visão, pois o corpo é uma prisão da alma. Tem de haver a libertação dos laços que nos prendem ao corpo e à condição animal.
De acordo com Platão, as almas que não conseguem encontrar a iluminação após a morte e a passagem pelos infernos, têm de reencarnar, passando pelo Rio do Esquecimento e perdendo as memórias das vidas passadas.

 

Gruta da Leda


Esta é uma divisão em forma ogival, em que surge a figura de uma mulher que segura uma pomba, acompanhada de um cisne, que parece mordê-la.
O cisne representa a Ave Solar, acompanhante de Apolo, aquando as suas viagens hiperbóreas. Segundo uma tradição iniciática, o canto do cisne transmite o conhecimento da “língua dos pássaros”, dando acesso à sabedoria e à imortalidade. A pomba na mão representa o espírito e transmite a ideia da Imaculada Conceição, que pode ser vista como uma alusão ao nascimento de Cristo.

 

Capela

Nesta capela, há um grande ressurgimento da época dos Descobrimentos. A Capela do Espírito Santo é católico-romana e tem referências aos três netos de Carvalho Monteiro, com três painéis.
Como foi já referido na página 8, o cristianismo adoptado por Carvalho Monteiro era puro e nesta capela surge num contexto de luta às transformações cristãs ou católicas ao longo da histórica, que criaram restrições ao pensamento livre do homem.
Na imagem em baixo, podemos ver a planta e alçado Oeste da fachada principal.


Palácio

 
Subjacente a todo o imaginário da Regaleira está a opção por um estilo de características nacionais, o manuelino. Esta opção viria a realizar-se numa obra de arte a vários títulos intemporal, isto é, por um lado, resistente à passagem do tempo, por outro, marcada por influências de várias épocas da história da arte e da arquitectura. Esta obra seria assim capaz de manifestar ideias trans-históricas e intemporais. Assinale-se, por exemplo, o Mito do Quinto Império, Idade de Ouro da Humanidade, cujo advento implicaria a colaboração messiânica de Portugal e que poderia ser relacionado com o relato camoniano da Ilha dos Amores.



No Palácio da Regaleira, destaca-se a Sala dos Reis que, dispondo ilustrações dos reis mais importantes para Carvalho Monteiro, revela as preferências monárquicas do mesmo, contendo uma alusão ao Quinto Imperialismo.
A Sala dos Reis liga-se à fundação da nacionalidade e à revelação de Ourique. Haveria que pensar a escolha feita por Carvalho Monteiro e as razões da opção pelas imagens de determinados soberanos em detrimento de outros. Haveria ainda que ponderar a razão da representação completamente diferente de três soberanos: D.Dinis, D.Afonso V e D.Sebastião. De notar ainda que entre as figuras femininas representadas surgem D.Inês de Castro e D.Isabel. A primeira, malograda vítima de um amor interdito pela razão de estado e a segunda associada, juntamente com seu marido, à implantação e difusão do culto do Espírito Santo em Portugal.




Concluindo, a Quinta da Regaleira é um lugar repleto de magia, naturalidade, simbolismo e esoterismo, que não deixa ninguém indiferente.
Representa um ponto de união e equilíbrio entre o corpo e a alma e é um espaço de pensamentos, meditações e reflexões que permite a introspecção, a análise própria e a busca espiritual.
A visita à Quinta da Regaleira é uma viagem a nós mesmos, aos limites e aos conhecimentos de cada um.

O próprio espaço da Quinta pode ser visto como uma ilha, lugar de certo modo fora do tempo e do espaço.


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Comentário de Antonio Jose Dias silva Barata em 21 Fevereiro 2011 às 9:39

Local fantástico, pela sua arquitectura é paradisiaco. Já tive a oportunidade de ai vêr uma peça de Teatro, à noite pelo grupo "Fatias de Cá" de Tomar que fazem peças em ambiente natural, Uma maravilha.

 

 

Comentário de Inês Sousa Almeida em 6 Fevereiro 2011 às 17:55

O Poço Iniciático é simplesmente fantástico.

É completamente essencial fazer, pelo menos, uma visita guiada à Regaleira.

Vê-se logo com outros olhos e ainda se percebe mais o misticismo do lugar.

Comentário de Tânia Barreira em 5 Fevereiro 2011 às 20:41
Conheci a Quinta da Regaleira no passado mês de Agosto de 2010 e fiquei fascinada! Sintra já por si é maravilhosa, mas esta Quinta merece sem dúvida no mínimo meio dia para a descobrir os seus cantos e recantos. A visitar sem dúvida!
Comentário de Pedro Bretes em 5 Fevereiro 2011 às 19:07

Se tivesse que votar nas maravilhas de Portugal, a Regaleira estaria no meu Top 5.

Vale mesmo a pena uma visita. Um dos meus percursos favoritos é descer o poço iniciático, entrar na gruta que liga o poço ao exterior. Segue-se uma caminhada de 5 minutos por um tunel escuro e no fim chega-se a um lugar paradisiaco.

 

Comentário de Erica Duarte em 4 Fevereiro 2011 às 13:39
Em Sintra só estive mesmo no Palácio da Pena e nos jardins que o envolvem, mas lembro-me perfeitamente de passar pela Quinta da Regaleira e pensar "uau, tenho que cá vir!". Ao ler o teu artigo de facto confirma-se a vontade de visitar este sitio.

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